Será a Vida complicada?

Por vezes damos por nós a dizer que a Vida é complicada. Especialmente quando nos vemos confrontados com situações que nos causam desconforto. Mas será que a Vida é mesmo complicada? Ou somos nós que complicamos esta “coisa” a que chamamos Vida?
A Vida é o que é – uma dança em perpétuo movimento de renovação e transformação. E como expressões dela que somos, também nós estamos sujeitos a esta dança: nascemos, crescemos e "morremos". Transformamo-nos, por assim dizer.
Assim é a Vida, e assim somos nós.
Oferecermos resistência a estes factos é pura perda de tempo. Seria o mesmo que oferecermos resistência à gravidade, ou ao facto de a água ser molhada. De nada serviria essa nossa resistência já que elas são como são. Na verdade, não faria qualquer sentido. Com isto não quero dizer que o facto de aceitarmos a Vida como ela é nos vá livrar de sentirmos, por exemplo, a dor perante a perda das pessoas que amamos. De forma alguma! Ao longo da nossa vida, a dor será inevitável. Já o sofrimento, esse será sempre opcional.
Cada vez mais me convenço que a Vida nem é complicada nem deixa de o ser. Já a forma como lidamos com ela… Essa sim, poderá ser complicada. Daí que talvez possamos concluir que só faz sentido falarmos em “complicado” se estivermos a falar da maneira como vivemos as nossas vidas, e não propriamente da Vida em si. Adjetivarmos a Vida de “complicada” é basearmos a Vida no que achamos que ela deveria ser, e não no que ela “É” de verdade.
Resta-nos então o facto de os complicados sermos nós.
- Será mesmo que somos nós os complicados?
Se formos honestos com nós mesmos, não temos qualquer dúvida quanto à resposta desta questão. Basta olharmos o mundo à nossa volta para percebermos o quanto complicados nós somos.
- Mas porque será que é assim? Porque será que somos mestres em complicar?
Podemos afirmar que tal se deve ao facto de sermos condicionados pelas vivências que vamos tendo ao longo da vida, pelas memórias que guardamos delas. E estamos certos ao dizermos isso.
Podemos também argumentar que somos condicionados pelas caraterísticas da nossa personalidade. E também aqui estaremos cobertos de razão.
Mas será tudo isto determinante na forma como lidamos com as nossa vidas? Penso que não necessariamente.
Se vivermos os nossos dias em modo “piloto automático”, que é o mesmo que dizer, a agirmos quase sem pensar, sem prestar atenção ao que estamos a fazer - estamos “aqui” mas a nossa cabeça está num outro lugar – com falta de presença, sem quase nunca nos colocarmos em causa, então é bem provável que a forma como lidamos com a nossa vida seja somente o resultado de condicionamentos, padrões de comportamento. Fatores esses que se vão cristalizando à medida que o tempo passa.
Acredito que ao agirmos de forma mecânica tornamo-nos “complicados”. Isto porque agimos por hábito, por impulso, o que significa ausência de consciência. Consciência demanda atenção – observação ao que acontece dentro, e fora de nós. Sem isso dificilmente conseguiremos romper com tudo aquilo que nos condiciona. Sem essa consciência seremos escravos do passado.
Somos condicionados pelo passado que perpetuamos no presente através dos nossos pensamentos. Diz-se em psicologia que condicionamento é a associação de um estímulo a uma reação, através da repetição. Se, por exemplo, crescemos num ambiente em que é prática comum sermos minimizados, desvalorizados, é muito natural que desenvolvamos uma baixa auto estima, mesmo quando já não vivemos dentro desse ambiente. O que significa que passamos a viver condicionados pela “crença” de que não temos valor, sejam quais forem as circunstâncias em que nos encontramos.
Falarmos de passado é falarmos das memórias que guardamos do que já vivemos. Sejam elas da infância, sejam de há um segundo atrás. É um facto que sem memórias o passado não existiria para nós. Mas também é um facto que, caso não as “recordemos” com a devida distância, corremos o risco de vivermos os nossos dias numa espécie de “mais do mesmo”. Isto porque, dessa forma, tudo aquilo que vivenciarmos será sempre visto com os “olhos” do passado.
Em questão de “memórias”, convém não perdermos de vista que todas elas têm um cunho pessoal. Duas pessoas podem guardar memórias totalmente diferentes relativamente a um mesmo acontecimento. Exemplo disso é o caso de irmãos que são educados pela mesma mãe e pelo mesmo pai, mas ambos guardam memórias diferentes no que respeita à infância que tiveram. O que confirma que as memórias que guardamos são subjetivas. Elas são o resultado da leitura que fazemos dos acontecimentos, e não os acontecimento em si.
É muito comum ouvirmo-nos dizer que nos comportamos desta ou daquela maneira, devido ao facto de, na nossa infância/adolescência, termos passado por determinadas experiências. E seria ótima esta nossa consciencialização se não víssemos esse condicionamento como algo inalterável.
Penso que não basta termos consciência dos nossos condicionamentos. É claro que esse será sempre o primeiro passo a dar – perceber onde é que nos deixamos condicionar. Mas é necessário que o passo seguinte seja rompermos com o tipo de padrão gerado por esse condicionalismo.
Acabarmos com o hábito de agirmos/reagirmos de determinada forma é fundamental para não convertermos a nossa vida num campo de batalha.
Como será que o fazemos? Por experiência própria, penso que só existe um caminho para lá chegar – estarmos atentos a nós mesmos.
Mas é aqui que a porca torce o rabo.
Estarmos atentos ao que se passa dentro de nós requer sermos honestos connosco, requer profundidade na análise. Requer que tenhamos a coragem de olhar para confusão que criamos dentro de nós. Para as ilusões a que nos agarramos. Não de uma forma intelectual, mas através de uma observação isenta de crenças e dos habituais juízos de valor baseados no “deveria ser”. Acima de tudo, requer que olhemos de frente para o que em nós nos incomoda e o aceitemos tal qual como se nos apresenta no momento. Não no sentido de resignação, pois isso é uma outra forma de resistência. Mas no sentido de total “rendição” ao que é.
Abandonarmos os nossos “deveria ser” – esta pessoa deveria ser assim, isto devia ser assado, o meu pai devia ser desta forma, a minha mãe daquela, o meu casamento devia ser desta maneira, o meu corpo devia ser daquela, eu devia ser assim e não ser assado, por aí fora – é desligarmos o complicómetro na nossa vida. E não só. É também olharmos para as pessoas/situações e vê-las à luz do que são, em vez de as vermos através das projeções que delas fizemos ao longo do tempo.
Olharmos os outros, ou as situações, através do pensamento, através das imagens que temos deles, é não vê-los de todo.
Tudo isto implica vontade e empenho da nossa parte.
Vontade para olharmos as circunstâncias da nossa vida. E empenho para evitarmos acrescentar-lhes uma carga emocional desnecessária que nos retira lucidez. Assim como dificulta a resolução de situações que pedem solução.
Existe uma oração chamada “Oração da Serenidade” que, a meu ver, apresenta-nos a fórmula para vivermos os nossos dias de forma lúcida o suficiente para gerirmos, da melhor maneira, as várias adversidades que possam surgir ao longo do nosso caminho, sem o atributo da complicação. Desconheço quem foi o autor, já que não existe consenso quanto à sua origem, mas isso também não é importante. Penso que, aqui, o importante é a mensagem e para onde ela nos aponta.
Ela diz-nos, essencialmente, o seguinte:
“ (…) Que tenhamos serenidade para aceitar aquilo que não podemos mudar, Coragem para mudar o que nos for possível E a sabedoria para sabermos discernir entre as duas. Vivendo um dia de cada vez, apreciando um momento de cada vez (…) ”
Aplicarmos estas sábias palavras no nosso dia-a-dia é uma boa forma de desatarmos os “nós” que nos atam ao passado. Afinal de contas, podemos não ter a possibilidade de alterar o passado, mas temos sempre a possibilidade de nos reinventarmos a cada momento.
A Vida nem é simples, nem complicada. A Vida é o que “É”.
Já nós... Nós somos sempre o que escolhemos ser a cada instante.
Abraço