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Há ainda alguma coisa pela qual viver?


“Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de "algo pelo qual viver" tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incómoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas vidas uma importância que de momento lhes falta. E estas pessoas também não têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao longo do último século, a luta política ocupou frequentemente o lugar consagrado à religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflita acerca da nossa história recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará para resolver todos os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos viver? Neste texto, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão necessária nas circunstâncias atuais como sempre foi. A resposta é que podemos viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta tradição que atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.

Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a concluir-se, as tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de assegurar que os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta tentativa ter corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de que as nações ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e do sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste episódio, de modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças morrer e depois continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência. Mas não são apenas as grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que requerem a nossa atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que são tão horríveis e evitáveis como as maiores. Por imensa que esta tarefa se nos afigure, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às quais se podem dedicar as pessoas que buscam um objetivo digno.

O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética como um sistema de regras que nos proíbem de fazer coisas. Não a entendem como base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou simplesmente inúteis. Não conseguem descortinar um modo de provocar impacto no mundo, e mesmo que conseguissem, para que se incomodariam? Não encarando uma conversão religiosa, não veem nada por que viver que não seja os seus próprios interesses materiais. Mas a possibilidade de viver uma vida ética fornece-nos uma saída para este impasse. Essa possibilidade é o objeto da presente reflexão. Aflorar meramente esta possibilidade será suficiente para desencadear acusações de extrema ingenuidade. Alguns dirão que as pessoas são naturalmente incapazes de ser outra coisa que não egoístas. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 abordam esta convicção, de várias formas. Outros afirmarão que, seja qual for a verdade acerca da natureza humana, a sociedade moderna ocidental há muito deixou para trás o ponto em que a argumentação racional ou ética conseguiria alcançar fosse o que fosse. A vida atual pode parecer tão louca que é possível perder a esperança de a melhorar. Um editor que leu o manuscrito deste livro indicou com um gesto a rua de Nova Iorque que se avistava da janela e disse-me que, ali em baixo, os condutores tinham começado a ignorar os semáforos vermelhos só porque sim. Como, dizia-me ele, pode esperar que o seu livro faça qualquer diferença, num mundo cheio de pessoas assim? Na verdade, se o mundo estivesse mesmo cheio de pessoas que cuidassem tão pouco da sua vida - quanto mais das vidas dos outros - nada haveria que se pudesse fazer e provavelmente a nossa espécie não andaria por cá muito mais tempo. Mas a ordem natural da evolução tende a eliminar os que são assim loucos. Pode haver uns quantos em determinada altura e não há dúvida de que as grandes cidades americanas albergam mais do que a sua quota-parte destes indivíduos. Mas o que é verdadeiramente desproporcionado é o destaque que este comportamento tem nos meios de comunicação social e na mente pública. É a velha história daquilo que faz a notícia. Um milhão de pessoas a fazer todos os dias alguma coisa que revele preocupação pelas outras não é notícia; um atirador furtivo num telhado, é. Este livro não ignora a existência de pessoas malévolas, violentas e irracionais, mas foi escrito na convicção de que as restantes não deverão viver as suas vidas como se todos as outras fossem sempre inerentemente, com toda a probabilidade, malévolas, violentas e irracionais.

De qualquer modo, e mesmo que esteja errado e as pessoas loucas sejam muito mais comuns do que creio, que alternativa nos resta? A demanda convencional do interesse próprio é, por razões que aduzirei num capítulo posterior, individual e coletivamente prejudicial. A vida ética constitui a alternativa mais fundamental à demanda convencional do interesse próprio. Decidir viver eticamente é simultaneamente mais ambicioso e mais poderoso do que um compromisso político do tipo tradicional. Viver uma vida eticamente refletida não é uma questão de observar estritamente um conjunto de regras que determinam o que devemos e não devemos fazer. Viver eticamente é refletir de uma forma particular sobre o modo como vivemos e tentar agir de acordo com as conclusões dessa reflexão. Se o argumento deste livro é sólido, não podemos viver uma vida não ética e permanecer indiferentes à quantidade imensa de sofrimento desnecessário que existe no mundo atual. Pode ser ingénuo esperar que um número relativamente pequeno de pessoas que vivem de uma forma refletida, ética, possa revelar-se uma massa crítica capaz de alterar o clima de opinião acerca da natureza do interesse próprio e da sua relação com a ética; mas quando olhamos para o mundo e vemos a confusão que nele grassa, parece valer a pena conceder a essa esperança otimista a melhor hipótese possível de sucesso.”

Peter Singer em “Como havemos de viver?”

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